quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

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Demorei, mas terminei de ler o último romance de Roberto Bolaño. Um livro com mais de oitocentas páginas. Em vez das habituais duas ou três semanas, fiquei nele três meses. Falando assim, parece que a leitura não foi grande coisa, que teria seguido mais para o cansativo do que a curtição, o que é um engano. O livro é magnífico, mas logo depois que o escreveu o autor morreu, por isso é o seu último trabalho. Não pensem que morreu por causa do livro, apenas aconteceu-lhe a infelicidade natural de quem está vivo, no caso dele a de ficar doente e seguir o curso da natureza de voltar ao pó, com apenas 50 anos de idade. Na verdade Roberto Bolaño morreu um pouco antes do livro ficar realmente pronto. Ele não pode ir até aquele momento em que o autor coloca o ponto final nas releituras e correções, então suspira de alívio, ou grita de alegria, e envia o livro para o editor. Bolaño deixou o trabalho ainda precisando de alguma revisão e edição no texto, nada que tivesse impedido seus editores de considerar que o romance estava pronto para ganhar o mundo. Há sobre isso, no final do livro, uma nota esclarecedora.

É um romance estranho, mas interessante, do tipo que faz o leitor querer continuar a leitura até o fim, mas, mesmo assim, fiquei agarrado nele três meses. Por que?

No começo Bolaño conta a história engraçada e irônica sobre a adoração que uns críticos literários europeus têm acerca de um escritor alemão, supostamente recluso, um tal Benno Von Archimboldi. Ficam caçando o escritor, ministrando palestras sobre ele e praticando coisas hilárias pela Europa até chegarem ao México, seguindo uma pista improvável. Quando parece que vão desvendar o mistério sobre o paradeiro do escritor, a história sofre uma guinada e mergulha em uma zona nebulosa, num lugar estranhíssimo, o México. O ritmo é alterado e isso fez diminuir a velocidade da minha leitura. Por que? Porque fiquei relendo o começo tentando reatar o fio da meada. Não havia nada ali, claro, no começo. Desisti e toquei como se fosse outro livro: a história de um sujeito chamado Amalfitano, lá no México.

Lá pelas tantas acontece outra mudança de ritmo e de enredo, mas eu já estava escolado e segui em frente. Ainda no México, vem a história de um jornalista americano que está ali cobrindo uma luta de boxe, coisa que por lá tem status semelhante ao da religião católica. Depois aparece a história onde um maníaco depreda igrejas e ataca sacristãos. Depois começam os assassinatos. Aí foi a hora em que uma pedra se instalou no meu estômago. São dezenas de descrições de cadáveres mutilados de mulheres, sempre no México.

Nesse momento achei que já havia me entendido com o Roberto Bolaño. “Bom, ele estava escrevendo vários livros, descobriu-se seriamente doente e que não terminaria qualquer um deles. Juntou tudo, criou uma linha fininha ligando mais ou menos a coisa toda e mandou para a editora.” Pensei.

Errei.

Logo estávamos de volta à Europa, seguindo em direção ao fim da história enquanto os fios da meada se ligavam de maneira genial.

É diferente, é fragmentado, é novo e bem escrito. Roberto Bolaño produzia literatura de qualidade quando deixou esse mundo.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Morte Súbita


Quem diria! A escritora J. K. Rowling lançou um livro que não fala de bruxos ou magia! Bem que ela avisou que não queria mais saber das histórias do feiticeiro mirim Harry Potter – nem tão mirim nos últimos volumes.

Tenho certeza de ter lido dois livros da série. Gostei muito do primeiro, achei bom o segundo e, apesar de estar quase certo de ter lido também o terceiro, não me lembro do que havia nele. Culpa dos filmes, todos ótimos! Diversão garantida, mas que prestaram um desserviço à autora me embaralhando a memória e satisfazendo minha curiosidade, a tal ponto que desisti de seguir comprando, mesmo em saldos ou em barraquinhas de feiras de livros, os outros volumes da série. Espero que a Senhora Rowling não tenha sentido a falta do meu dinheiro. Afinal, ela já estava beirando os 450 milhões de exemplares, vendidos pelo mundo todo, quando parei.

Estava parado até agora, quando não resisti à tentação da novidade e comprei seu último lançamento: Morte Súbita (The Casual Vacancy), o primeiro livro que escreve para adultos e não para pequenos e adolescentes (e crianças grandes como eu que não resistem a uma boa história de aventuras). Depois de terminada a leitura não restou dúvida a respeito de a quem o texto é dirigido.

No novo romance ela escreve a crônica de um vilarejo inglês, Pagford.  A coisa começa com um acontecimento inesperado, que dá o título à obra: a morte súbita de um cidadão querido por muitos (não por todos) e importante para os projetos da administração do lugarejo.

A autora conduz a narrativa num crescendo de pequenas fatalidades, desencontros e intrigas de todos os tipos entre os vizinhos. É véspera da reunião para a tomada de algumas decisões capitais ao futuro daquele subúrbio inglês. Mas, como resultado imediato da morte súbita do Sr. Fairbrother, a pequena assembleia local, responsável por tais resoluções, fica desfalcada, o que causa desequilíbrio entre duas facções dominantes. Antes de mais nada, há urgência na escolha de um novo conselheiro. Tudo pode acontecer enquanto o entrevero se desenvolve, misturando adolescentes de mau comportamento, adultos de caráter duvidoso, idealistas equivocados e a utilização da internet para o mal.

A qualidade da trama, da construção dos personagens, com suas sutilezas psicológicas, surpreende. Talvez eu estivesse esperando o texto de alguém que conhecia por suas boas narrativas fantasiosas e mirabolantes e me deparei com densidade e drama.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

No Jardim das Feras

Desde menino tenho fascínio por aviões e navios. A história da Segunda Guerra Mundial, publicada exaustivamente em livros e enciclopédias, era uma fonte inesgotável de leituras sobre as peripécias dessas duas invenções (apesar dessa adoração pelos aviões e navios, preciso manter certa distância, pois sofro de enjoos quando embarco em qualquer um dos dois).
Durante algum tempo, e já não era tão menino, minha fonte predileta foi uma coleção de pequenos livros da Editora Renes: História Ilustrada da Segunda Guerra.
Palavras como Stuka, Messerschimitt, Spitfire, Mustang, Fortaleza Voadora, Bismark, Graf Spee, V2 e muitas outras, tinham um significado romântico e aventureiro naquela cabeça curiosa de candidato a herói. Claro, que no meu inocente encantamento pelos soldados, marinheiros e pilotos, heróis lutando com suas máquinas fabulosas, não percebia o lado negro da guerra – tem sempre gente que estraga tudo, não é mesmo? Os arquivos e a literatura estão lotados de escritos, romanceados ou não, sobre os homens e mulheres que lutaram na Segunda Guerra, sem muitas considerações sobre os aspectos morais do lado do front em que militavam.
A vida segue e continuamos as leituras, aprofundamos o interesse e, das máquinas fabulosas e seus pilotos, das aventuras heroicas nos campos de batalha: partisans, comandos, ases da aviação de caça, passamos a cavar motivações e a moralidade dos feitos. A guerra não é bela.
Não desisti dos aviões nem dos navios. Continuo achando bonitas as silhuetas, incrível o desempenho das máquinas que estavam por aí naquela época dantesca, e heroico o desprendimento dos que tinham coragem de lutar a bordo de maquinetas que hoje seriam proibidas de decolar ou desatracar de qualquer cais. E as minhas pesquisas e leituras continuam.
Uma nova - provavelmente a última – etapa, no meu interesse pela Segunda Guerra, se materializou na forma da curiosidade sobre o que acontecia antes dela, o que levou as coisas àquele patamar de violência irracional. Então, o foco passou a ser a Alemanha, seus personagens e o povo que vivia por lá e que permitiu, pelo voto, que Hitler e seus capangas assumissem o poder absoluto.
É fácil achar o que ler sobre isso: o que acontecia antes do nascimento e desenvolvimento do nazismo, a preparação da guerra, a guerra, seu desfecho e a loucura dos que governavam a Alemanha. Na internet qualquer um encontra quase tudo sobre a Segunda Guerra, mas é leitura de livro de História, descritiva e xarope para muitos, mesmo para mim que leio há muito tempo sobre o assunto.
O livro do jornalista norte-americano Erick Larson, No Jardim das Feras (In the Garden of Beasts) - na edição brasileira criaram um subtítulo boboca, Intriga e sedução na Alemanha de Hitler-, não é obra de ficção e mostra o começo de tudo por um ângulo diferente. Baseia-se principalmente nos documentos pessoais do embaixador Dodd e na correspondência trocada com o Departamento de Estado em Washington. Também serviram de fonte os arquivos e as cartas de sua filha namoradeira, Martha, trocadas com amigos e o ex-marido, deixados nos Estados Unidos e em documentos e diários dos outros personagens envolvidos.
É 1933 quando o professor universitário Dodd, bem relacionado em Washington, mas duro de dinheiro e sem experiência diplomática, é nomeado embaixador dos Estados Unidos e chega na Alemanha para trabalhar. Até a nomeação do professor Dodd era costume dos países, inclusive do republicano Estados Unidos, enviar para suas representações “diplomatas de carreira”, que naquela época significava: homens ricos, da alta sociedade, que se valiam do cargo para patrocinar um tipo de diplomacia de salões de festa, esbanjando o dinheiro do próprio bolso.
O professor Dodd virou embaixador por iniciativa do presidente Franklin Roosevelt, atropelando a hierarquia “profissional” da diplomacia americana. Seus subordinados rancorosos da embaixada na Alemanha e os colegas do Departamento, em Washington, se perguntavam uns aos outros como ele poderia sobreviver no exterior apenas com o salário de embaixador. Ele conseguiu. Sua filha também conseguiu fazer o que mais gostava: namorou quase todo mundo que valia alguma coisa na Alemanha, incluindo o chefe da Gestapo de plantão, Rudolf Diels, um espião da Rússia de Stalin e, não por falta de tentativa, quase “pegou” o próprio Hitler.
O livro No Jardim das Feras é hipnótico. Mostra, sob a ótica de um intelectual oriundo das universidades americanas, o princípio, quando o nazismo ainda era apenas um refogadinho anti-semita, atraente à grande parte das nações e apetitoso à maioria faminta do povo alemão. Termina quando o professor Dodd é, finalmente, vencido pelos desafetos e mandado de volta para casa enquanto a Alemanha já era uma imensa panela de pressão, exibindo os sinais da grande explosão.
 

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

O silêncio do túmulo


Uma trama intrincada e uma história bem contada é o que imagino que todos procuram quando vão ler um romance policial. Arnaldur Indridason conta uma história desse tipo no seu livro, O silêncio do túmulo (Grafarþögn).

Para começar, a narrativa se passa em Reykjavík, na Islândia, e isso a torna diferente da maioria das histórias de detetive que andei lendo. Essas, até agora, sempre se passaram em algum lugar dos Estados Unidos, da Europa, principalmente Grã-Bretanha ou França e até mesmo no Brasil. (Islândia? Não é aquele lugar gelado e cheio de vulcões com nomes impronunciáveis?)

Através da trama do Arnaldur outra coisa acontece: somos apresentados à história recente da Islândia, desde a época da Segunda Guerra, quando a ilha foi “ocupada” por tropas britânicas e americanas, com o pretexto de defendê-la de uma possível (mas remota) invasão nazista. Também passamos a conhecer um pouco do desenvolvimento de sua capital, Reykjavík (até mapinha tem no livro).

Coisas interessantes não faltam ao enredo. Os personagens também são importantes nesse tipo de literatura e estão lá - solidamente construídos - e nosso herói, o inspetor Erlendur, com sua determinação profissional, vida particular caótica e um caminhão de ansiedades, é perfeito.

Tudo começa nos idos de 1940, no seio de uma família dominada por um homem monstruosamente violento, e vem até nossos dias quando é descoberto um túmulo clandestino. De quem é o cadáver? O que aconteceu para ele ser enterrado ali? São perguntas que levam o livro todo para serem respondidas, claro. Valeu a pena ler a história até sua última palavra.

Divertimento garantido, de qualidade.

O silêncio do túmulo – Arnaldur Indridason – Companhia da Letras.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

1Q84


Antes, minha única aventura pela literatura japonesa se chamava Musashi, do Eiji Yoshikawa. É o romance biográfico sobre o samurai famoso Myiamoto Musashi. Resenhas elogiosas e o comentário favorável de um amigo me deixaram animado para encarar o tijolo (dois grossos volumes). Não consegui ir além das primeiras vinte ou trinta páginas: xarope sonífero. Havia sido intoxicado pelos arrasadores filmes medievos do Kurosawa e o ótimo romance Xógum, também sobre o Japão medieval, mas escrito pelo inglês australiano James Clavell, então fiquei frustrado. Queria muito conhecer a história do herói samurai, sou curioso sobre o Japão feudal, mas não deu. Por sorte os livros eram emprestados e foi só uma questão de devolução, senão a tijolada teria sido dolorosa.

Vinte anos depois, cá estou novamente com um livro de outro japonês, dessa vez o Haruki Murakami e o seu 1Q84 - é assim mesmo com Q (foi uma forma criativa que o autor encontrou para grafar 1984, ano em que se desenrola a trama do romance e  também uma homenagem ao livro de George Orwell, 1984). Pelo que entendi, a letra que, em japonês, tem pronúncia semelhante à do número nove em inglês: nine.

Só falo dos livros que gosto. Mas 1Q84 é um livro esquisito. Não posso dizer que gostei, mas não consegui parar de ler e quando terminei fiquei com a sensação de que vou acabar comprando o segundo volume, a continuação do romance. Por isso escrevo.

Pensando no que acabara de ler, lembrei do Musashi, que é um livro de ritmo lento, texto prolixo e repetitivo. Me voltou à memória que esse tipo de coisa me tirou a paciência e me fez abandonar a empreitada, quando tentava ler as aventuras do samurai. Qual a diferença entre os dois livros e porque consegui ir até o fim do segundo?

Em 1Q84 há sexo, bebedeiras, tiros, facadas, mulheres e homens honestos, assassinas lascivas e pilantras de vários tipos. Em Musashi há homens maus, cabeças cortadas e ventres abertos em profusão, mas é pura ética e moral samurai, em densidade religiosa. 1Q84 conta com parágrafos e parágrafos de texto prolixo, perorativo. O autor repete e repete descrições e costuma explicar o mesmo fato mais de uma vez. O livro é, em vários momentos, exasperante. Pulava trechos sem fim, mas não largava a leitura. Em Musashi isso não adiantava, era só pular da panela para a frigideira, pois o maior problema lá era a velocidade – a escrita impõe um ritmo que me levou ao desânimo e à desistência. Murakami, culto e esperto, mistura suspense, mundos paralelos, personagens misteriosos, seitas religiosas, terroristas, ternura, amor e texto repetitivo. Apesar desse defeito da narrativa, o japonês conduz numa trama interessante, exótica o suficiente para manter o meu interesse no desfecho. Cheguei a suspeitar da tradução: será que a transcrição descuidado do conteúdo dos ideogramas para o português pode gerar um texto repetitivo?, pensei, totalmente ignorante do idioma japonês.

Pensando bem, vou fazer mais uma tentativa na leitura do Musashi.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

O fim da infância


O inglês Arthur C. Clarke escreveu muitos livros. O mais conhecido no Brasil é 2001, uma odisséia no espaço. 2001 é bom e histórico, afinal, virou um filme e dos bons. Esse, O fim da infância, que acabo de reler, foi um dos primeiros que ele escreveu e é um dos melhores entre os que li. Rivaliza até com Encontro com Rama, que considero sideral, quer dizer, maravilhoso. O fim da infância, primeiramente, foi escrito como um conto curto (Anjo da Guarda) e, depois de sofrer algumas intervenções promovidas pelo seu agente literário, transformou-se no primeiro capítulo do romance.

O conto original foi publicado em uma revista em 1950, o livro em 1953 (uma observação, do autor, nos lembra de que o livro precedeu em quatro anos o lançamento do primeiro satélite terrestre, o Sputnik). Logo depois, em 1956, Hollywood comprou os direitos do livro. Esse direito, à produção cinematográfica, já mudou de mãos várias vezes, mas ninguém o produziu. A leitura me fez ter alguma ideia do porque dessa “demora”. A cena inicial do filme Independence Day, em que as naves alienígenas chegam e estacionam sobre as principais cidades terráqueas, pagou direitos autorais aos detentores dos direitos cinematográficos sobre o romance. Entretanto, o resto do filme não tem nada a ver com o resto do livro.

O que há de mais interessante nesse romance, de ficção científica, é que se passa todo sobre a superfície do nosso planeta. A parte em que um dos personagens faz uma viagem espacial é acessória, pois o mais importante é o que acontece, oitenta anos depois da partida, quando retorna ao seu lar, a Terra.

O livro é assombroso. É uma viagem sem volta. Diante da cronologia dos fatos associados às datas, do lançamento do livro ao início da conquista espacial, que o romance precede, imagino como deve ter sido lê-lo na época em que foi publicado. Recomendo como um excelente “abridor de mente”. Aposto que a maioria dos leitores não continuará a ser mesma pessoa depois de terminar a leitura. O autor, no tempo em que escrevia o romance, pesquisava o universo do que chamamos de paranormal. Apesar de alguns anos depois ter se transformado em um cético, seu livro consegue nos envolver numa atmosfera carregada pela exibição da inevitável evolução e o fim das coisas, da vida e até da história do homem sobre a superfície do planeta.


segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Bird by Bird


Quando comentei o livro do Mario Vargas Llosa, Cartas a um jovem escritor, mencionei um outro livro, o Bird by Bird, da Anne Lamott, e disse que ele merecia, oportunamente, um comentário próprio. Aí vai.

- Então, você quer escrever um livro?

- Quero.

- O melhor a fazer é ir escrevendo logo. Supondo que você tenha alguma coisa sobre o que escrever, não é?

- Tá na minha cabeça há muito tempo.

- O que está esperando para colocar isso no papel? Se é como diz, que isso está em você há tanto tempo... Vai, senta e escreve. Ou prefere que antes eu lhe mostre como é que se transforma ideias em texto? (Puxa! Como seria bom se isso fosse possível na vida real – aparecer alguém com disposição para nos desentranhar nos caminhos da escrita)

- Eu adoraria! Já fiz várias tentativas, sem resultado. Essa coisa continua assombrando de dentro da minha cabeça. Não sai de lá nem consigo esquecê-la.

- Olha, parece complicado, mas na verdade é simples, se você tomar algumas medidas que favoreçam o fluxo das ideias. Esse é um ponto. Disse o mestre.

- Tá, até aí eu fui. Ideias não me faltam. Mas me enrolo na organização delas. Começo a escrever e, em pouco tempo, fico enredado pelas várias possibilidades, os muitos caminhos para a narrativa seguir. Empaco. Começo a acreditar que escrever é mais um trabalho de organização do que de criação. Acho que a diferença entre o escritor e os simples mortais está na capacidade de um transformar impulsos cerebrais em texto inteligível, criativo e novo, não importa o assunto, enquanto aos outros, como eu, até agora, cabe ficar nos mata-burros das primeiras linhas. É como se um grande pensamento branco tomasse conta do cérebro. E lá fica a ideia, acenando, como quem diz: vai, me escreve, qual o problema? Afinal, sou toda sua e estou bem aqui, na sua cabeça.

- Chegou perto. Vamos olhar com mais cuidado esse ponto. Deixa a organização do seu “romance” para mais adiante. O primeiro passo é tirar o máximo da tal idéia, algo que possa se transformar em texto, como você mesmo disse, inteligível, criativo, essas coisas. Qualquer rabisco vale. Frase solta vale. Sem organização mesmo...

- E como isso é feito?

- Ora, escrevendo.

- Mas...

- Espere. Sei que vai dizer que empaca etc. Aqui, quando digo que é escrevendo que se começa a tirar a ideia da cabeça, não falo da produção do texto final, mas apenas daquela pressão que, novamente usando as suas palavras, lhe assombra a cabeça há tempos.

- Mas, ao conseguir escrever isso, não estou trabalhando com a minha ideia e produzindo o livro?

- Sim e não.

Fiquemos imaginando que a conversa continua. Muitas páginas serão necessárias para narrar a epopeia do mestre, disposto à tarefa de desvendar, ao neófito, os mistérios que se ocultam por dentro da mente daqueles que conseguem produzir escritos, inteligíveis, criativos e novos, não importando o tema.

Este diálogo, infelizmente, é um bocado improvável, mas pouparia o tempo de muito candidato a escritor. É improvável porque dificilmente se encontrará o sábio interlocutor, com a disposição de ensinar o caminho entre as pedras (e espinhos) da produção literária.

Mas, para isso também há remédio. Procurando a solução para o meu problema - sim, leitor incauto dessas linhas, o neófito sou eu -, encontrei mapas que mostram alguns desses caminhos entre as pedras. Descobri, seguindo aquelas pistas, que há muitos deles por aí: escritos que falam do escrever.

Há os livros técnicos, os eruditos, outros até são engraçados e alguns, os melhores, conseguem misturar um pouco de tudo para dar ao leitor, interessado em se passar para o lado do escritor, boas informações sobre o prazeroso, mas extenuante, ofício de escrever.

A triste verdade: não há quem ensine a escrever! Tudo vai depender apenas daquilo que você já sabe – desde os tempos da escola – e/ou apreendeu dos muitos livros que leu. Ah, não leu muitos livros? Vai subir uma ladeira bem mais íngreme. Para escrever com qualidade - que não significa apenas o domínio das técnicas, mas a facilidade de escolher a sintaxe, o estilo com que determinará a fluência de suas ideias - a leitura prévia de muitos autores lhe proporcionaria um caminho mais plano. A cultura literária faz milagres. Existem autores, por exemplo, que produzem texto como se estivessem deslizando ladeira abaixo.

O primeiro ponto abordado pelo “mestre”, no diálogo improvável, diz sobre a desordem das primeiras anotações. O segundo ponto, que não deixamos sequer ser mencionado, diria sobre o fluxo das palavras do cérebro para o papel e alguns métodos para que isso se mantenha pelo tempo necessário à consecução da missão de escrever o conto, a crônica, o romance, a monografia ou o relatório ao chefe do departamento.

O mestre disponível é coisa rara, uma espécie praticamente extinta, mas, nas minhas buscas, encontrei um livrinho, uma verdadeira preciosidade, um manual de instruções na arte da produção literária. Quem gosta da ideia de passar a escrever deve comprá-lo. Garanto que terá muitas horas de divertimento e aprendizado com a Sra. Anne Lamott, autora do tal Bird by Bird, ou Palavra por palavra, em português. (Não gostei desse título em português, mas temo que o leitor não vá se dar conta da sutileza que envolve o título, no original em inglês. Eu fui obrigado a “saber” disso porque, quando comprei o livro, só havia a edição americana. Não sei como foi que os pássaros se transformaram em palavras na edição brasileira. Mas não tenho a menor dúvida de que isso deve ter sido objeto de muita discussão entre o tradutor e os editores)